dimanche 22 janvier 2012

carta de amor, 2004

Última carta de amor de Inez a Pedro

Pedro, hoje dispo-me à nascente da fonte e ouço o melro enrolar o seu canto na força desobediente do rio.

Como ele corre lambendo o flanco das margens.

Agudo o grito do pavão branco que se passeia por perto.

Estranha a beleza que em envolve nesse instante.

Parece-me ver tudo descolado do mundo.

Uma poesia escandalosa nua e obscena na sua cruel beleza.

Vivo agora e posso morrer já tanto este mistério me é favorável e se conjuga à desordem que anima o meu sentir.

Nesta hora de exaltação pura, não chamo por ninguém.

Nem por ti, mesmo que saiba onde vives e esperas.

Não consinto que neste momento de irrealidade, e profundo amor por tudo o que vive e me está próximo da mão, venha a tua dúvida perturbar-me a mente.

Estou nua e viva e não penso em nada.

Esta brisa é fresca e cortante, a pele enrija os dentes juntam-se, cerro os punhos, se que devo guardar tudo, mesmo os gestos mais bruscos e doridos.

Muros, ruinas e musgos frescos na sombra.

Ah se for hoje o dia da traição e do punhal, saberei dizer à minha carne que não sou corrupta como ela.

Estou a inchar de medo neste amor profundo, como um ventre doente e dorido.

Tenho na pele escrita por dentro o teu nome pintado.

Como a santa limpando o nome do Senhor, avanças-te o linho que me era a carne, e por dentro, por dentro limpaste o rastro frio do teu coração.

Foi como naquela ultima noite em ti, onde através das tuas pálpebras eu via o teu sonho, e as flores eram o orvalho juntinho como pérolas e búzios, tanta imaginação me dava febre e a tua mão na minha eu nem respirava.

Beijava-te os dedos um a um e recomeçava contando até mil, para que a noite fosse mais longa.

Punha-me a fechar os olhos e a pedir a Deus que voltasse ao início do mundo para te puder esperar.

Já é outra vez manha para todos nos, devo-me vestir, tratar dos que me rodeiam, voltar a ser outra e sem vontade.

Junto a eles rezo coisas sem nexo e o amor é tanto que o sorriso me acolhe na sua boca oferecida, encontro toda a leveza do meu pecado.

Lavo neste rio os braços e as mãos que te rodeiam quando neles te enrolas.

Deixo-os assim ao gelo, redondos e suspensos, quero oferecer a coroa deste corpo a um ausente, e até que a dor se desvaneça, sem ter ninguém para me reter.

Tenho frio, o que vim eu aqui fazer nesta manhã violeta ainda por desabrochar? Entre estrume lírios piso serpentes e o veneno triste sobe-me pelas veias.

Ouço o sino da capelinha a ressoar, abre-se o arvoredo às minhas mãos. Se fugisse agora virias ao meu encontro?

Descer por ai abaixo como as cartas de amor, que escorregam até ao refúgio amigo da rocha. Ou seria melhor deixar-me afogar?

Se quiseres saber o que me leva a ficar injustamente perseguida e imóvel vais ter de ter paciência e guardar os olhos postos na eternidade.





Inez, Paris 20 de Maio de 2004.

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